Aberrações culturais

Maria Bethânia_caricaturaO Brasil é notavelmente ignorante e inculto. E não é à toa, afinal, trabalha-se duro para manter esse status. Esta semana veio ao nosso conhecimento mais uma frente pela ignorância: a roubalheira envolvendo a Lei Rouanet de incentivo à cultura.

A cultura pode ser entendida como o conjunto de valores intelectuais, tradições e costumes. É, portanto, inerente à espécie humana. A cultura é algo que se passa de uma geração a outra e se transforma ao longo do tempo e nos diversos lugares. Pode-se dizer que a cultura é a marca registrada de um povo.

Pois bem, quando esse povo é composto por mais de 200 milhões de pessoas, que vivem em regiões geográficas diferentes, com histórias distintas, é natural que existam particularidades. A cultura do Norte do Brasil é totalmente distinta da do Sul, por exemplo. E ambas são de uma riqueza incrível. Mas poucos têm o privilégio de conhecer e apreciar as diversas manifestações culturais deste nosso Brasilzão. E essa é uma das razões que me levam a compreender a importância da Lei Rouanet.

A lei, em si, não é ruim. É nobre a intenção com que foi criada: preservar o patrimônio artístico e cultural; divulgar as artes brasileiras; manter museus e monumentos históricos, entre outros. O mecanismo é interessante, pois visa envolver empresas privadas e pessoas físicas no apoio às mais diversas manifestações culturais, compensando-as com benefícios fiscais — precisamente, o desconto no Imposto de Renda.

No entanto, o que vemos são bibliotecas, teatros e museus sendo fechados (só em Brasília, a Biblioteca Demonstrativa e o Teatro Nacional estão fechados há mais de dois anos), casarões históricos caindo aos pedaços, precisando de restauração, enquanto artistas consagrados recebem verbas públicas para fazer shows e cobram ingressos caríssimos.

Isso, sem falar no quase-blog milionário da Maria Betânia, fala sério! Bethânia teve um projeto aprovado pelo Ministério da Cultura em 2011, segundo o qual a artista colocaria um blog no ar, com vídeos em que ela apareceria recitando uma poesia todos os dias. O valor do projeto? Só R$ 1.356.858,00. Agora me respondam: desde quando Maria Bethânia precisa de dinheiro público para fazer isso? Se ela anunciar um projeto desses, certamente aparecerão inúmeros patrocinadores dispostos a pagar para ter um pedacinho na página com propaganda — ela poderia até escolher os de seu agrado.

Outro caso é inesquecível: o livro da Claudia Leitte. De publicação de livro eu entendo um pouco, e posso afirmar categoricamente que para uma pessoa como a Claudia Leitte, publicar um livro nem faz cócegas em seu recheado bolso. Inclusive, é bem provável que editoras pagassem para publicá-lo. Já escrevê-lo é outra história, e não vamos entrar nesse mérito. Não é estranho que o MinC tenha aprovado o benefício para uma artista desse porte? No caso, a módica quantia de R$ 356 mil.

A repercussão do blog de Bethânia e do livro da Claudinha foi péssima, e ambas desistiram de seus projetos. Mas esses não foram os piores: tem penetra demais nessa festa boca-livre. Escândalo dos escândalos foram os dois projetos abortados que somavam mais de R$ 25 milhões e previam concertos do Maestro João Carlos Martins, que sequer sabia que havia sido agraciado pela lei Rouanet, já que nunca havia submetido qualquer projeto. Ao descobrir pela Folha de São Paulo que havia sido contemplado, pediu o cancelamento de ambos os projetos. Soube-se, depois, que a empresa Rannavi Projeto e Marketing Cultural utilizou o nome do maestro sem o seu consentimento. Estelionato puro e simples. Uma vez mais, o MinC “não percebeu” qualquer irregularidade.

Não preciso citar os inúmeros artistas/ celebridades que fizeram uso de milionárias cifras da lei em benefício próprio. A lista é extensa, e envolve shows de cantores que levam multidões dispostas a pagar o preço que for pelo ingresso; peças teatrais de gosto duvidoso; um filme sobre José Dirceu; um painel artístico para difusão cultural, que garantiria entrada grátis para alguns escolhidos da elite paulistana; e o casamento de um filho de magnata, entre diversas outras aberrações. Tudo devidamente aprovado pelo MinC. Parece que a Operação Boca-Livre está esclarecendo a real “necessidade” de se manter um ministério exclusivo para a cultura.

Enquanto isso, talentos das artes plásticas, cênicas, literatura, cinema, arquitetura e música nunca serão conhecidos do grande público, porque não conseguem viver de sua arte. Enquanto isso, o Museu do Ipiranga, o Teatro Nacional de Brasília, o Museu Mariano Procópio, igrejas barrocas, bibliotecas públicas, casarões centenários, obras de Aleijadinho etc. estão fechados ou sofrendo a ação do tempo e se deteriorando. É assim que o Ministério da Cultura cuida de nosso patrimônio artístico e cultural?

Bom fim de semana procês!