Cinismo e profanação

O cinismo, de fato, é algo odiável. A hipocrisia com que algumas figuras públicas posam de vítimas ao sabor das circunstâncias é de uma impudência sem tamanho.

Pois não é que o Comitê de Direitos Humanos da ONU foi acionado pelos advogados do senhor Lula alegando perseguição política? Só porque, após inúmeras apurações da Justiça Brasileira, ele está na iminência de ser preso. Não é possível que a ONU vai melar o sonho de vermos, finalmente, todos os brasileiros, mas todos mesmo, iguais perante a Lei.

A perseguição política é algo seríssimo. Vivemos décadas de ditadura e deveríamos saber o que é isso. Lula está sob investigação há pelo menos um ano, em total liberdade. Só precisaram fazer uma condução coercitiva ante a dificuldade de conseguir um depoimento. Dado o depoimento e não se constatando, naquela ocasião, nenhum crime que justificasse sua imediata prisão, voltou a gozar de total liberdade poucas horas depois.

Bem diferente do que é, realmente, uma prisão política. Temos hoje tristes exemplos bem pertinho de nós, na Venezuela. O companheiro de Lula, Maduro, mantém presos dezenas de cidadãos que ousaram levantar a voz contra o regime.

Dentre os presos políticos venezuelanos, merece destaque o líder da oposição, Leopoldo López, preso desde fevereiro de 2014. No final do ano passado, foi condenado por incitação pública à violência — ele organizava manifestações populares e a polícia reagia com violência. Entenderam?

Um ano depois da prisão de Leopoldo López, foi a vez de encarcerar o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, sob a acusação de tramar um golpe de Estado. Não sei detalhes sobre o caso, mas se é que ele estava planejando algo contra o governo de Maduro, isto deveria chamar-se contragolpe, não? Bem, o fato é que ele está preso há mais de 500 dias e até hoje não foi julgado, não tem sentença. Vive em situação de absoluta insegurança.

Só de maio para cá, 21 pessoas foram presas na Venezuela, sem provas de crimes, sob a acusação de planejar, incentivar ou comparecer a protestos contra o governo. Tem-se conhecimento de que tais pessoas são vítimas de tortura. A insuspeita Human Rights Watch denunciou a situação à OEA, pedindo que pressione o governo de Nicolás Maduro a libertar todos aqueles que foram presos arbitrariamente e investigar os maus-tratos.

Há inúmeros exemplos de presos políticos ao redor do mundo, mas o que ocorre na Venezuela é mais do que suficiente para que possamos comparar a perseguição política que Lula alega sofrer com a perseguição política da vida real.

Na vida real, o preso político não é sequer investigado. Não é conduzido um rigoroso processo para coletar provas. Nestes casos, vale a máxima “culpado até que se prove o contrário”, coisa que nunca acontece.

No mundo da verdadeira perseguição política, o preso não tem a menor chance de pagar os melhores advogados da Europa, capazes de se reunir com diversos departamentos da ONU para obter subsídios para fundamentar a petição. Em uma real situação de perseguição política em um país, basta ser um transeunte no lugar “errado” e na hora “errada” para ser preso. E torturado e sofrer as mais diversas violações físicas, psicológicas e morais. A perseguição e a decorrente prisão política ocorrem exclusivamente pelas ideias e pelos ideais. Opor-se ao poder constituído é o “crime” inafiançável a que essas pessoas são sumariamente condenadas.

Definitivamente, não é este o caso de Lula. Para nós, meros expectadores das ações da Justiça Brasileira, há inúmeros indícios de crimes cometidos por ele. Certamente as investigações já reuniram provas suficientes para pedir a prisão do meliante. Sabendo disso, tratou de se mimetizar como perseguido político. Ironicamente, no mundo animal o mimetismo é uma marcante característica dos moluscos cefalópodes.[1]

A petição, portanto, é um desacato à noção de prisão política, no escopo dos Direitos Humanos. Um desrespeito aos presos políticos do mundo todo, que vivem a miséria da falta de liberdade de pensar e de ter ideias opostas ao poder constituído. É uma profanação ao sofrimento dessas pessoas e de suas famílias.

Se o Comitê de Direitos Humanos da ONU aceitar a petição de Lula, estará provado que sofre influência de ideologias em detrimento da justiça, que deve ser aplicada a qualquer criminoso, após investigação, reunião de provas e direito à ampla defesa. Consequentemente, a Declaração dos Direitos Humanos será instrumentalizada em defesa de um poderoso político suspeito de graves delitos.

Por sorte, nossas instituições não são obrigadas a acatar as recomendações da ONU. Que elas sejam suficientemente fortes e convictas para continuar atuando em favor da nação e de toda a gente brasileira.

Bom fim de semana!

[1] Cefalópode – classe de moluscos que compreende os maiores e mais inteligentes entre todos os invertebrados. São predadores eficientes e excelentes na fuga e na camuflagem (mimetismo). Exemplos: polvos e lulas.