Nada consta

cunhaO Brasil é um país realmente estranho. Aqui é imprescindível que a Suprema Corte decida sobre a impossibilidade de um réu que esteja respondendo a ações penais assumir a Presidência da República. E esta decisão, ao que tudo indica, será tomada na próxima semana.

É estranho, porque, pela lógica, um sujeito nessa situação deveria ser impedido de se candidatar. Pela legislação, no entanto, enquanto não houver decisão transitada em julgado, ou proferida por órgão judicial colegiado, o “suspeito” é elegível para qualquer cargo, mesmo sendo acusado de cometer um ou mais crimes previstos na Lei da Ficha Limpa. E, uma vez eleito, garante o foro privilegiado e a consequente demora do julgamento. É incrível como nossa cautelosa legislação garante, geralmente, benefícios ao meliante em detrimento do cidadão de bem.

Para inúmeras situações de nosso dia a dia precisamos apresentar um Atestado de Bons Antecedentes ou uma Certidão de Antecedentes Criminais, onde de preferência esteja escrito “nada consta”. Por que um político não deve apresentar isso antes de se candidatar? E por que impera em nosso país, sempre, o tal do “transitado em julgado”? Já sei a resposta: todos são inocentes até prova em contrário, e esse comprovante, ao que parece, seria uma condenação. No entanto, a lógica da boa intenção e da confiança em um futuro governante passa pela necessidade de não pairar a mínima suspeita sobre o indivíduo, nem a menor dúvida sobre sua honestidade.

É impressionante como a corrupção é “sistêmica e enraizada”, repetindo as palavras do procurador Deltan Dallagnol. Está em todos os níveis, mas com altíssima concentração na classe política, que se cerca de todos os subterfúgios legais para se safar da cadeia. Ainda que um candidato seja suspeito de uma dúzia de crimes ou mais, ele poderá ser eleito.

O objeto de análise do STF é uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade em maio passado, quando Eduardo Cunha era o primeiro na linha sucessória da Presidência da República. O pedido, inclusive, concentra sua argumentação no ex-deputado, hoje preso.

Tendo isso em conta, o julgamento do STF que decidirá se um réu em ação penal está apto a assumir a Presidência da República pode ter dois resultados excludentes entre si: (i) corre o risco de se tornar uma imensa pizza, pois o “objeto” do pedido é o Eduardo Cunha, já definitivamente fora páreo — isso anularia o processo; ou (ii) muda para sempre o cenário político nacional, a partir de uma deliberação mais geral, reconhecendo que pelo menos o Presidente da República, ou o cidadão que esteja no exercício do cargo, deve ser indubitavelmente probo. Esperamos, sinceramente, que a Suprema Corte julgue a situação geral e delibere nestes termos.

Finalmente, cabe comentar que esse julgamento pode ser um passo importantíssimo para a limpeza que precisa ser feita na política brasileira. A Lava-Jato ajuda muito, mas uma decisão da mais alta corte do país tem um efeito perene, pois é a interpretação mais aguda possível de uma situação comum e, ao mesmo tempo, esdrúxula.

Bom fim de semana procês!