O demônio de Tolstói e o Brasil do século XXI

Há alguns meses, estou lendo um livro de contos de Liev Tolstói, uma coletânea de duas mil páginas. Algumas histórias são simplesmente geniais; outras, inacreditavelmente ruins, mas isso será assunto para a resenha do livro. O que quero contar nesta crônica é que Tolstói era um homem muito cristão e, para ele, tudo no mundo que não fosse conforme os ensinamentos de Jesus era obra do demônio.

Pois vejam só o que ele escreveu no conto “A destruição do inferno e sua reconstrução”, quando um demônio explica a Belzebu a metodologia aprimorada de estímulo a roubos aplicada àqueles que ouviram as palavras de Jesus: “Os roubos visíveis, ou seja, tomar à força uma carteira, um cavalo, uma roupa, constituem no máximo a milionésima parte de todos os roubos legais praticados o tempo todo por pessoas que têm a possibilidade de fazê-lo. Em nosso tempo, os roubos impunes, escondidos e a disposição geral para o roubo se estabeleceram de tal forma entre as pessoas que o objetivo principal da vida de quase todas elas é o roubo, moderado apenas em razão da luta entre os próprios ladrões”.

A história, escrita em 1902, foi inspirada na realidade russa dos czares, num sistema de trabalho de quase escravidão e extrema pobreza do povo, aparentemente apático com relação à situação por reconhecerem a autoridade e, inclusive, a sacralidade do poder constituído, corrupto. Qualquer semelhança com um país tropical do hemisfério sul, no século XXI — para Tolstói, pelo menos — não seria mera coincidência, mas sim, o sucesso das ações dos demônios de Belzebu.

Não sei quem é o Belzebu do enredo brasileiro, nem que demônio estimula a corrupção. Talvez seja esta a natureza humana, caso não esteja submetida a controles realmente rígidos, com punição adequada. O fato é que no Brasil, está mais do que claro, quem tem a possibilidade de roubar “legalmente”, salvo honrosas exceções, o faz sem qualquer cerimônia, mesmo com uma investigação em curso do tamanho da Lava-Jato. E o único moderador do roubo é a concorrência — os outros corruptos. Nas eleições de 2014, por exemplo, ouvi algumas vezes que era preciso “mudar os ladrões”, porque era sabido que todos os concorrentes eram corruptos.

Ante cada revelação do passado recente, colocamos nossas barbas de molho para o presente e o futuro próximo, que são decisivos. A situação prática ocorreu esta semana: Temer esfregou seus ministros no muro chapiscado, exigindo-lhes que “incentivassem” seus correligionários a votar favoravelmente pela urgência da reforma trabalhista, sob pena de perderem seus cargos e os de seus indicados. Manda quem pode e obedece quem tem juízo: rapidamente, o presidente teve seu resultado satisfatório. E nós ficamos com uma pulga do tamanho de um cavalo atrás da orelha: que democracia é essa que se curva à ameaça de perda de cargos? O que há nesses “postos de trabalho” que até a mudança de convicção vale a pena? A Lava-Jato nos dá a resposta, confirmadíssima: dinheiro. Além do foro privilegiado de que quase todos têm extrema necessidade.

O demônio da corrupção, tão bem caracterizado por Tolstói, deixou Belzebu admirado com seu trabalho, muito eficiente, por ser “mais geral, mais encoberto, mais difundido pelo espaço e pelo tempo e mais estável”. A justificativa mais interessante foi a difusão no tempo, “graças à instituição dos empréstimos, sociais e estatais: agora, roubam não só as gerações presentes, mas também as futuras”. As danosas consequências da corrupção sistêmica, integrada e institucionalizada no Brasil ao longo dos últimos 15 anos não serão consertadas em menos de 2 anos. Um raio não costuma cair duas vezes num mesmo lugar: não temos agora uma equipe como a de FHC no comando do Ministério da Fazenda do Governo Itamar, após o impeachment de Collor. Nem um Itamar Franco no comando do país.

A situação brasileira, realmente, está mais parecida com a da Rússia do início do século XX, que sabemos como foi “solucionada”: com um regime autoritário, sanguinário. Espero que saibamos superar essa imensa crise sem permitir a ascensão de “salvadores da pátria” que podem transformar nosso país em uma ditadura. Atualmente, assistimos ao que acontece na Venezuela, e é doloroso ver o povo dominado por um único homem que debocha de sua gente, e não faz nada para amainar a fome e a miséria. Vemos um povo que não tem total liberdade para se manifestar, dizer as verdades necessárias, e que sofre todas as agruras trazidas pelo demônio da corrupção e da infalibilidade do Estado.

Por falar em liberdade, hoje é o dia de celebrarmos o sonho mais caro que os inconfidentes nunca puderam ver realizado. É uma festa brasileira. Graças à liberdade, posso escrever e publicar este texto sem medo, com a certeza de que a minha opinião e a minha exposição não serão a ruína da minha vida. E com a esperança de que o demônio da corrupção e seus agentes estejam próximos de serem banidos do nosso Brasil.

Bom fim de semana procês!

Foto: Tolstói na Crimeia