Os intocáveis

Em meio à rotatividade de figurões do primeiro escalão da República, todos fazem questão de dizer que a Operação Lava-Jato é intocável. No entanto, o que vemos são inúmeras tentativas de, pelo menos, “estancar” a força-tarefa, com o intuito de que alguns mandachuvas permaneçam, estes, sim, intocáveis.

Boa parte da intangibilidade que reina na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios deve-se ao dispositivo constitucional do foro privilegiado. Tal instituto está presente nas constituições brasileiras desde o início da República, com algumas variações. A carta magna vigente determina que compete ao Senado Federal julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente, Vice-presidente, Advogado-geral da União, Procurador-geral da República e Ministros do STF. É isso mesmo, o Senado é o juiz dos juízes supremos da nação, no quesito crime de responsabilidade, apenas. Os parlamentares, tanto do Senado como da Câmara dos Deputados, e os Ministros de Estado são julgados pelo STF por qualquer crime. O modelo é replicado na esfera estadual.

À época da Assembleia Constituinte, o Brasil estava recém-saído de um regime autoritário que durou 20 anos. O foro especial garante aos parlamentares o exercício do mandato sem risco de serem depostos por algum ditador que porventura apareça. Boa intenção, péssima solução, pois não há tipificação de crimes; é qualquer um, mesmo.

Daí para o desvirtuamento do foro privilegiado foi um pulo, que gerou excrescências como a nomeação de Lula e de Moreira Franco. Isso, sem mencionar o número significativo de eleitos que migram seus processos comuns para as instâncias superiores.

Quanto mais alta é a instância, menor é o número de juízes. Como consequência, tem-se o acúmulo de processos nesses tribunais superiores, visto que estes estão melhor preparados para serem instâncias recursais, sem se debruçarem na tarefa de julgar os criminosos detentores de foro especial. O resultado é um número grande de intocáveis na nação, aguardando um julgamento que leva tanto tempo que alguns crimes chegam a prescrever. Os meliantes contam com a morosidade dos egrégios tribunais — é a impunidade legalizada.

O foro privilegiado está na boca do povo. Todo mundo vê que o sistema funciona até bem para castigar o ladrão de galinhas e é muito ineficiente para punir os verdadeiros saqueadores da nação, pelo menos enquanto podem gozar do benefício. Um pequeno deslize na declaração do imposto de renda gera multa e uma enorme dor de cabeça para o contribuinte. Enquanto isso, os intocáveis da nação se refestelam com propinas de origens diversas, porque foram eleitos com uma campanha que certamente contou com um polpudo caixa 2.

São dois pesos e duas medidas sem a menor cerimônia, quando o lógico seria que o ocupante de cargo público, justamente pelas funções de grande responsabilidade que exerce, fosse alvo de punição mais rígida em caso de crime — parlamentares ou Ministros de Estado deveriam ser exemplos de honestidade para toda a nação.

No meio de toda essa impunidade legalizada, o STF deverá se debruçar sobre o instituto do foro privilegiado, pelo menos o plenário já recebeu uma provocação. Vai desagradar a alguns figurões, mas agradar enormemente à população, ainda que haja limitações para as mudanças. A proposta do Ministro Luís Roberto Barroso é reinterpretar o instituto do foro especial e restringi-lo a crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo. Assim, crimes cometidos antes da investidura no cargo não iriam para julgamento pelo Supremo, permaneceriam nas instâncias inferiores. Aqueles delitos cometidos durante o mandato seriam julgados pelo STF, sendo que, no caso de perda do cargo, o processo seguiria para instância inferior. Se aprovada a proposta do Ministro Barroso, será possível desovar quase 500 processos do STF para instâncias inferiores.

Assustador. É bandido demais ocupando cargo público. Todos intocáveis.

Bom fim de semana procês!