Uma conquista constitucional ameaçada

Nosso parlamento não nos surpreende. Nossos congressistas jamais nos decepcionam, já que deles nunca esperamos nada realmente bom, que seja feito para atender ao interesse público. A Câmara dos Deputados, especialmente, é exímia em discutir e aprovar aberrações; parecem estar contra nós, contra quem os elegeu. Um exemplo é o PL 4302/1998, aprovado esta semana e que apresenta pontos discutíveis. No entanto, ainda não vi nos principais periódicos jornalísticos uma discussão sobre um ponto importantíssimo.

Primeiro, é preciso ressaltar que o PL proposto em 1998 foi completamente desvirtuado. O substitutivo do Senado ainda mantinha várias características do primeiro projeto, mas os deputados o modificaram completamente. Entre outros pontos, o PL original previa que os serviços terceirizados não se aplicavam às atividades-fim das empresas e que os contratantes das empresas de terceirização seriam apenas empresas ou pessoas físicas. Já o texto aprovado esta semana define o contratante como “pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços determinados e específicos”. Aí mora o perigo.

Todos os órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, direta e indireta são pessoas jurídicas. Isso implica que as atividades-fim de toda a administração pública, em todas as esferas, podem ser terceirizadas. Em outras palavras, o serviço público se tornará um imenso cabide de empregos. Os concursados, à medida que forem se aposentando, serão substituídos por terceirizados que, certamente, terão seu QI (Quem Indica).

Falo com conhecimento de causa. Antes do acórdão do TCU proibindo a terceirização das atividades finalísticas dos órgãos públicos, vi até filho de senador e esposa de bambambã serem contratados por meio de empresa terceirizada, sem a qualificação requerida para os servidores, e exercerem as mesmas atividades. O nepotismo reinará, assim como os interesses de grupos específicos, muito provavelmente, se sobreporão aos públicos. Já pensaram sobre isso?

Quem será colocado para exercer as funções do Ministério Público, da Polícia Federal, dos fiscais da Anvisa e do Ministério da Agricultura? Se pela Operação Carne Fraca ficamos sabendo que parte dos fiscais responsáveis não era de servidores da carreira de Fiscal Federal Agropecuário, o que acontecerá a partir dessa permissão para aparelhar o serviço público, sob o nome de terceirização? Sim, na prática o que vai acontecer é o aparelhamento da máquina pública.

Operações como a Lava-Jato terão chance com tanta gente no MPF e na PF colocada ali por padrinhos? Certamente, qualquer ação contra a corrupção morrerá no berço.

Mas, por incrível que pareça, ainda há luz no fim do túnel. O Presidente do Senado, Eunício de Oliveira, declarou que a Casa está analisando o PLC 30/2015, que regulamenta os contratos de terceirização. O PLC ainda deve ser discutido na Comissão de Constituição e Justiça antes de ir a plenário.

O texto aprovado e enviado ao Senado quando Eduardo Cunha ainda era o presidente da Câmara é bem estruturado, define termos, tem redação clara e objetiva. E começa afirmando que as disposições da futura lei não se aplicam à administração pública. Isso é fundamental para a manutenção da isenção e da impessoalidade no serviço público.

A Constituição de 1988, ao instituir a investidura em cargo público exclusivamente via concurso, profissionalizou o serviço público de maneira diferenciada dos demais países latino-americanos. Entra governo, sai governo, os servidores brasileiros permanecem conduzindo as políticas de Estado. Essa conquista constitucional está ameaçada pelo PL aprovado e que foi para a sanção presidencial. É, de fato, um retrocesso.

Parece que o sonho de qualquer político brasileiro é poder ocupar todos os postos da administração pública com pessoas de sua confiança ou, pelo menos, aquelas às quais devem o favor do emprego.

Ficamos na torcida para que o Senado nos surpreenda e aprove um PL que realmente contemple o interesse público e o bem-estar dos cidadãos.

Bom fim de semana procês!

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