Sinto vergonha, logo existo*

shameUm dos candidatos à presidência da Câmara dos Deputados afirmou esta semana que trabalhará para que seus colegas percam a vergonha de dizer que são deputados. Seria trágico, se não fosse tão cômico. Quase gargalhei ao ler isso. Pensava que tais espécimes de Homo sapiens eram desprovidos desta capacidade — a de sentir vergonha.

Tenho enorme dificuldade de compreender o porquê de se ter vergonha em dizer que é deputado, uma vez que ninguém é obrigado a assumir tal cargo, ao contrário, chegar lá demanda certo esforço. A pessoa deve, espontaneamente, candidatar-se, concorrer a uma eleição, ganhar e tomar posse. Portanto, são, no mínimo, quatro etapas a serem vencidas para se tornar um deputado (sem entrar no mérito das disputas intrapartidárias): a vontade própria, a aprovação da candidatura pelo TSE, ser eleito e a assinatura do termo de posse. Ora, se uma pessoa sente vergonha, tem até o momento da assinatura para abrir mão da nefasta tarefa que tanto a embaraça. E, claro, pode renunciar a qualquer momento.

Vergonha sinto eu, e muita. Sinto vergonha até que não é minha ou, pelo menos, não deveria ser. Por exemplo, depois da quase gargalhada inicial — reação imediata à descabida declaração — fiquei envergonhada de ver que o tal parlamentar teve a falta de vergonha de abrir a boca para dizer uma coisa dessas. Suponho que ele também não sinta vergonha dos 23 processos que tem no STF, segundo apurou o jornalista Luís Nassif.

Estou envergonhada também de viver num país que ocupa 69º lugar num ranking que mede a corrupção, num total de 175 países. Com tantos mecanismos de transparência e controle existentes (que são supereficientes com o vigésimo escalão do serviço público), eu esperava, francamente, que estivéssemos mais bem colocados. Mas a Operação Lava-Jato está aí para nos mostrar que o poço é bem mais fundo e que há algo além da camada de pré-sal. Pensando melhor, acho, sim, que temos muita sorte de estar no 69º lugar. Eu deveria estar aliviada, mas prefiro perguntar: quando estes dados foram analisados, antes ou depois da Lava-Jato? Provavelmente, antes, pois me parece que estamos bem colocados demais para a atual realidade.

Sinto vergonha (e revolta) de viver num país cuja constituição é desrespeitada tranquilamente, a começar pelo seu artigo primeiro. Já foram inúmeras as situações que demonstraram que nem todos os cidadãos são iguais perante a Lei. Não vou perder tempo, nem gastar linhas citando, todo mundo sabe. E falando em desrespeito a leis, estou morrendo de vergonha de certa votação que ocorreu no Congresso essa semana e que, por ela, constatam-se dois fatos, igualmente vergonhosos: (i) o povo foi impedido de entrar na chamada “Casa do Povo”; e (ii) nosso parlamento é formado por um grupo significativo de vendidos.

Também me dá vergonha viver numa cidade que, com a chegada da estação chuvosa, vem sendo tomada pelo mato, já que o governo do quadradinho não tem dinheiro para hospitais e creches e muito menos para capinar e manter a cidade limpa. Moro numa cidade abandonada: a Capital Federal está abandonada e me envergonha dizer que moro em Brasília.

Envergonho-me com a possível falta de liberdade da presidente escolher seu ministério. Parece que um grande doador da campanha não ficou contente com uma indicação e está querendo impedir a nomeação que o desagrada. Afinal, foi para que mesmo que ele doou recursos para a campanha? E isso me faz ter vergonha de viver num país que movimenta milhões nas campanhas políticas, com razões bastante claras, como podemos notar.

É envergonhante viver num lugar onde predomina o toma lá, dá cá no cenário político. É vergonhoso e desanimador perceber o privado se apossando do público. Sinto uma revoltante vergonha de ver o MEC destinar ¼ de bilhão para um único projeto, com tantos problemas urgentíssimos e básicos que o sistema educacional brasileiro têm, todos sabemos bem. Aliás, também tenho vergonha do tal projeto, de cujos resultados preliminares tivemos uma amostra em singelos sete segundos na abertura da Copa do Mundo.

Tenho e, ao que tudo indica, ainda terei muito do que me envergonhar, já que o futuro não se afigura nada auspicioso. O jeito é assumir a vermelhidão da face, pois me dá vergonha e me entristece estar rodeada por tanta sem-vergonhice, ainda que não seja eu a responsável pelos atos vergonhosos, nem indiretamente, pois sequer votei nos responsáveis. Ufa! Pelo menos dessa vergonha eu não padeço.

Bom fim de semana!

[*] Vladimir Soloviev, filósofo e poeta russo (1853-1900).

 

5 Responses

  1. Minha querida Xará,
    Você disse com palavras adequadas o que muitos brasileiros gostariam de externar.. Realmente estamos indignados, tristes, amargurados com a situação dolorosa de nosso país. Quanto à nossa capital você já falou tudo.
    Excelente seu artigo, precisamos não só sentir,mas também mostrar o quanto estamos decepcionados e impotentes.
    Vânia Moreira Diniz

    • Vania Gomes disse:

      Minha doce xará,
      Vivemos tempos vergonhosos, especialmente aqui em Brasília, onde nossa gente está sem creche, sem escola, sem ônibus, sem comida no hospital por falta de pagamento. Como diria Boris Casoy, “isso é uma vergonha”!
      Obrigada por sua presença amiga!
      Beijos e carinho.

  2. Miguel Jacó disse:

    Boa tarde Vânia, a sociedade Brasileira está doente, precisamos de um choque de honradez, porque estes políticos molestados pela corrupção saem do seio da nossa sociedade, e é esta também quem os corrompe de modos que não teremos melhoras significativas enquanto não formos todos tomados pela lisura, por enquanto uma das coisas boas de morar no Brasil é ter alguém com o seu talento sendo minha compatriota, parabéns pela contundente manifestação de repúdio a tudo que ai está, através deste irretocável texto, um abraço deste seu fã de sempre, MJ.

    • Vania Gomes disse:

      Meu caro poeta Miguel Jacó,
      Obrigada por sua presença neste espaço!
      De fato, os políticos eleitos são o retrato da de nossa sociedade… Um retrato triste e distorcido, mas um retrato…
      Receba meu abraço.

  1. 09/10/2016

    […] para que seus colegas perdessem a vergonha de serem deputados, assunto que abordei na crônica “Sinto vergonha, logo existo”. Vamos combinar que não é nada bom termos deputados sem-vergonha. Seria melhor que eles […]